06 outubro, 2006

Peças e colheitas

Essa vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas pêrdas e colheitas *

Mas, quando um dia normal termina como um bom papo com um grande amigo, algumas páginas de Sartre, uma música dos Stones e um cigarro na varanda de uma cidade que queria ser Paris, é possível se ver de um ângulo bem mais simples e confortável. Por mais que ainda faltem muitas peças para encaixar nesse tortuoso quebra-cabeça da vida, já é possível notar que daquilo que já está construído começa a nascer uma bela paisagem dos Alpes, ou então a ponta de uma magnífica Pirâmide. E, num sorriso de alívio, os erros se tornam uma sucessão de charmosos desafios e as vitórias borbulham num grande brinde com o melhor dos champagnes.

* João Guimarães Rosa, em Grande Sertão:Veredas

26 agosto, 2006

Sincronia

Eu gosto de sincronizar o disco com os cigarros. Gosto que o bife acabe junto com a bata-frita. Que a pipoca termine junto com o filme. Gosto que a cerveja dure o mesmo que a noite e seus intermináveis assuntos. Leio meus blogs preferidos até que termine a bateria do computador. Durmo enquanto você estiver em meus sonhos. Gosto de abraçar até o fim do calor de um reencontro. Gosto de sincronizar essa música com o seu beijo.

13 agosto, 2006

treze-de-agosto

Aquela era o seu primeiro aniversário no apartamento com vista para o Central Park. Era o fim da noite de um dia longo. Tinha falado com todos os amigos e parentes, recebidos votos de todos os tipos de felicidade, sempre respondendo com um simples “obrigado”.
Tomava a sua cerveja como fazia sempre desde que se mudara para Nova York. Pensava na vida no Brasil e em como tudo mudara desde o embarque naquele avião sem que ninguém soubesse com antecedência. Estava lá para, enfim, terminar de escrever o romance que ocupara sua existência nos últimos três anos. Mas, nada saia como previsto e era muito difícil pensar em ponto final quando tantas coisas novas aconteciam diante de si. A mudança com jeito de fuga e as surpresas daquela cidade louca lhe embaralhavam as idéias e o livro acabara ficando quase abandonado e cada vez mais distante de um final.
Por mais que era difícil e estranho passar aquela data longe de todos, não conseguia supor a hipótese de voltar. O antes não lhe parecia real. Até porque, era real demais para alguém que, agora, se alimentava do lúdico.
Eram sobre essas dores que divagava quando a campainha tocou. Quem poderia ser a essa hora, com quem ainda não tinha falado, quem, afinal, seria capaz de adivinhar a combinação de números para digitar a senha, entrar no prédio e estar a apenas alguns passos dali? Quem?
Quando a viu, diante dele, trazendo apenas aquele sorriso pelo qual se apaixonara um dia, um pensamento preencheu o fatídico aniversário. Datas “especiais”, às vezes, são apenas álibis para fazermos tudo aquilo que nos dá medo.

22 julho, 2006

Les Jardins du Luxembourg

Faz apenas três semanas que estive aqui pela última vez. Parece-me que foi ontem que sentei nesta mesma cadeira de ferro, mas sinto como se um século todo tivesse se passado. Naquele dia também fazia muito calor e muitas crianças brincavam na fonte d’água. Outras pessoas liam seus livros e seus jornais, mas tudo parece tão igual. E é. Menos pra mim que estive tão longe nesse tempo. Após anos pegando as mesmas linhas de metrô para ir trabalhar, começara uma vida diferente. Tinha que acordar mais cedo, é verdade, mas agora ia caminhando, passando todos os dias de manhã pela ponte, aonde tinha a chance de suspirar com a paisagem, essa sim incapaz de me cansar. Aquela moça morena estava de volta, apesar de que eu ainda estranhava ter de dividir com alguém o último cigarro da noite. Valia a pena, já que agora havia alguém com quem dividir o resto da noite. Os livros foram abandonados e as notícias de jornais estavam altamente desinteressantes. Eu não me preocupava, sabia que tudo isso iria passar, como passou. Muita coisa aconteceu, eu soube aproveitar esse momento, mas era natural que aos pouco tudo fosse se acomodando. Não nas antigas posições, que fique claro, mas, sim, na nova ordem de uma nova vida. Eram as surpresas que, com o tempo, se tornavam realidade.
Agora, sob o efeito da poeira baixa, eu recuperava a curiosidade sobre os destinos de Raskólnikov. Era isso que me trazia de volta a esses jardins. Mas, com o livro no colo e o sol refletindo nos óculos escuros, eu sabia que estava apenas tentando retomar o meu dia-a-dia. É isso que, afinal, faz com que eu me sinta vivo.

02 julho, 2006

Life Pursuit

Este cigarro ainda está quente do teu último trago. A porta não está toda fechada, mas aqui dentro ainda estão os medos e as angústias que te fizeram sair. Agora estás te jogando nos braços de um outro amor, mas as tuas lembranças estão guardadas em cada golpe de vista que eu dou nesse quarto. Aos poucos, outras histórias vão se somar às tuas, outros prazeres serão ouvidos por essas paredes. E o teu sabor vai escapar pela janela como a fumaça do cigarro que ainda tem o teu cheiro. Podes sair correndo, mas o que existe entre nós ainda vai queimar lentamente. Mas, eu bem sei, também vai se dissipar como o som dos seus sussurros. Será leve e dolorido, até o dia que eu já não mais saberei quem esteve aqui, e, muito tempo após essa tua fuga apressada, as paixões que um dia me confessaste me deixarão só. Talvez nos encontremos naquele café e você terá enfim aprendido a saborear um bom livro. Ou então, pode ser que sentemos no mesmo vagão do metrô e tu sejas apenas mais um rosto entre tantos. Eu já não posso saber dos teus passos se há muito não conheço teus caminhos. Meu deus, por onde andaste esse tempo todo? Parte agora que estás toda nua e deixa que eu termine esse último cigarro em que sentirei o gosto dos teus lábios. Sente-te livre para viveres o que desejares, pois nossas melhores lembranças não morrerão quando eu lavar o cinzeiro antes de sair para trabalhar.

27 junho, 2006

Advertência

Acordou dois minutos antes do despertador. Pulou da cama nervoso e afobado, pois sabia que não tinha mais cigarros. Antes mesmo de escovar os dentes ou tomar seu café da manhã, desceu desesperado os três lances de escada até o andar térreo. Foram mais dois quarteirões a passo apertado até enfim chegar de forma triunfal na padaria. Um Marlboro, por favor.
Então, já amansado pelo primeiro cigarro do dia, ele pode notar com certo espanto a singularidade que aquele maço possuía em relação a todos que já tinha visto. A lateral era, evidentemente, tomada pelo anúncio oficial. Mas este que fora sempre ignorado, agora lhe pretendia a respiração. O Ministério da Saúde adverte: a diferença entre o remédio e o veneno está na dose.

25 junho, 2006

O ouvido, os olhos e o coração

Eu fui lá e fiz tudo-o-que-deveria-ter-sido-feito. Mas, mesmo assim, não deu certo. O “resultado” não foi o “esperado”. Eu pensei, ponderei, e, mesmo assim, cheguei no “contrário”. E agora? Como será que devo seguir a diante? Fazer o que é melhor para mim ou seguir tudo isso que estão me sussurrando nos ouvidos?
Desculpem-me, senhores. Mas, o meu caminho sou eu quem traça, vocês gostando ou não. Afinal, não estou aqui para agradar, mas apenas quero escrever a minha história. E, agora não posso parar. Estão vendo todos esses caminhos na minha frente? Eu ainda preciso escolher um, e, mais difícil, tenho que traçá-lo. E vocês ainda querem me dizer o que é “certo” e o que é “errado” antes que eu mesmo possa chegar lá? Quanta pretensão têm vocês, não? Será que é tão difícil de entender que eu ainda não posso abraçar as respostas se não tive se quer tempo de formular as perguntas?
O meu caminho traço eu. E, por favor, deixem-me sofrer o desgosto das minhas derrotas. Não berrem sobre obstáculos se eu nem mesmo posso ouvi-los! As vitórias serão minhas. E, pasmem, as derrotas serão curtidas no silêncio das suas gritarias. Enquanto vocês estarão comemorando as suas alegrias, eu estarei vivendo dos meus erros.
Por mais que vocês acreditem no contrário, eu hei de ser os meus próprios tropeços. Dançarei sobre eles, levantarei meus braços pra dizer “esse sou eu”. Gostem os senhores ou não, é assim que será, até que eu ache que não deva mais ser. Essa metamorfose ambulante jamais fechará os olhos pra realidade, mas tampouco dará ouvidos a essa verdade pronta e engarrafada.
Eu chegarei lá, mesmo que tenha que trilhar o caminho da mentira. E ainda que seja necessário deixar restos de dor pelos cantos.
Aquietem-se aí fora. A minha verdade é construída aqui dentro.